Café Kino inicia com o filme “Guerra dos Pelados”
O projeto será inaugurado no dia 10 e terá a presença do cineasta Sylvio Back
A primeira edição do Café Kino irá exibir e debater o filme “Guerra dos Pelados” na quarta-feira, a partir das 12h30, no Teatro da UFSC. O encontro terá a presença do diretor do filme, Sylvio Back, que estreia na próxima semana sua nova produção, “O Contestado – Restos Mortais”, também sobre a temática da Guerra do Contestado. O Café Kino foi idealizado pelo secretário Paulo Ricardo Berton da Secretaria de Cultura da UFSC (SeCult), em um trabalho conjunto com o professor do Curso de Cinema Jair Fonseca, coordenador do Cineclube Rogério Sganzerla, e de Zeca Pires, cineasta e coordenador do Núcleo de Documentários do Departamento Artístico Cultural (DAC).
O primeiro filme a ser exibido no Café Kino relembra os 100 anos da Guerra do Contestado e foi produzido em1971. Asessão começará às 12h30 e a partir das 14h30 começa o debate sobre “Documentário, ficção e filme histórico”. A discussão terá participação do diretor do filme, Sylvio Back; do professor da UFSC especializado na Guerra do Contestado, Paulo Pinheiro Machado; do professor Jair Fonseca como representante do Cineclube Rogério Sganzerla, e do cineasta Zeca Pires. Fonseca conta que é prática dos cineclubes debater para fazer as pessoas pensarem. “Trata-se de ter uma postura ativa diante do cinema, e não de consumo passivo. Filmes produzem pensamento, e debater após as sessões fazem ampliar a cultura cinematográfica.”
Do alemão, Kino significa “cinema”, sendo também usado como sinônimo de um movimento de cineastas. O encontro mensal que irá debater sobre produções de cinematográficas é aberto a todo o público, mas dirigido principalmente às pessoas com interesse na área audiovisual. A segunda edição acontecerá em novembro.
Sinopse
Em 1913, no interior de Santa Catarina, a concessão de terras para exploração de seus recursos e a construção de uma estrada de ferro por uma empresa estrangeira gera revolta dos ex-propriados. Reunidos em torno de um reduto messiânico, os “pelados” reagem, gerando violento conflito com o exército. O filme é baseado no episódio histórico da Guerra do Contestado (1912-1916) e foi filmado na cidade de Caçador.
Sylvio Back: Biobliofilmografia
Sylvio Back, cineasta, poeta, roteirista e escritor. Filho de imigrantes húngaro e alemã, é natural de Blumenau (SC). Ex-jornalista e crítico de cinema, autodidata, inicia-se na direção cinematográfica em 1962, tendo realizado e produzido até hoje trinta e sete filmes – curtas, médias e onze longas-metragens: “Lance Maior” (1968), “A Guerra dos Pelados” (1971), “Aleluia, Gretchen” (1976), “Revolução de 30” (1980), “República Guarani” (1982), “Guerra do Brasil” (1987), “Rádio Auriverde” (1991), “Yndio do Brasil” (1995), “Cruz e Sousa – O Poeta do Desterro” (1999); “Lost Zweig” (2003); “O Contestado – Restos Mortais” (2010); e “O Universo Graciliano” (2012, em finalização). Também publicou livros roteiros dos filmes.
Com 74 láureas nacionais e internacionais, Back é um dos mais premiados cineastas do Brasil. Sua obra poética, em especial, os livros de extrato erótico, coleciona uma vasta fortuna crítica. Em 2011, recebe a insígnia de Oficial da Ordem do Rio Branco, concedida pelo Ministério das Relações Exteriores pelo conjunto de sua obra cinematográfica e de roteirista.
Sobre o filme
Leia na íntegra o depoimento de Sylvio Back sobre as filmagens:
“A Guerra dos Pelados”:
memória das filmagens
Sylvio Back
“A Guerra dos Pelados” (1971) era um filme intimorato naquela quadra de chumbo e brasa que consumia a alma do país. Vinha na contramão do cinema brasileiro de então, que coincidia com o auge da repressão militar patrocinada pela ditadura Médici (1969-1974). Uma obra carregada de premonição, repleta de fantasmas institucionais da nacionalidade, batendo direto no fulcro do nosso passado onde se vislumbram as origens da miséria brasileira em todos os tempos – a crônica e viciosa a questão da terra.
Sob a capa de um catolicismo rupestre, cimento que mantinha unos milhares de caboclos, a posse e a usurpação da terra não se escamoteavam, como também não, o sonho separatista de se criar uma “Monarquia Sul Brasileira”. E por ela se sacrificaram mulheres, crianças e homens de todas as idades, latitudes, categorias sociais e etnias, todos se submetendo a uma implacável disciplina litúrgica dentro de suas cidadelas “santas”, o que acabava por fanatizá-los.
Quem planta e trabalha a gleba (“A terra é como a mãe, depois que se perde, o valor aparece”), dela é simbolicamente seu titular. Mote atraente para quem era expulso de seu chão à força com a chegada de empresas estrangeiras e a implantação do capitalismo na região. A sabedoria bebida junto aos índios, que sempre vivenciaram o que é ter seu horizonte surrupiado e o azimute de seus mortos espalhado aos sete ventos, tinha seu custo.
Mesmo para quem jamais tenha lido “Geração do Deserto”, de Guido Wilmar Sassi, livro que inspirou o roteiro do filme, ao incorporar o visual e o testemunho da região contestada sessenta anos depois, “A Guerra dos Pelados” acabou extrapolando a ficção e “inventou” uma nova “guerra camponesa”. Começando por adiantar uns e atrasar outros acontecimentos, situa a ação em 1913/14 no “reduto” de Taquaruçu.
Sem nenhuma coincidência, a produção do filme localizou-se em alguns dos sítios históricos do Contestado nos municípios de Caçador, Calmon e Matos Costa, em pleno planalto catarinense. Portanto em cima de antigos e reformados latifúndios e espaços de grilagem, herdeiros de um passado então crepitante.
Procurando passar ao largo de situações cronológicas ditadas pela obra de Sassi e atendo-se mais ao “clima” e ao “memorial resistente”, o filme sublinhava a força motriz subterrânea do movimento insurrecional, a da luta pelo direito à terra. Era o que os “pelados” propunham, ora de forma política clara e inelutável, ora ficava subentendido no próprio misticismo que escorava a reação de quatro anos enfrentando canhões Krupp com espadas de madeira.
Houve uma guerra encenada à frente das câmaras, e uma guerra à vera atrás das câmaras. Antes e durante as filmagens de dois meses, em pleno inverno de 1970, vingou tamanha bateria de incidentes que a meio caminho do fim eu estava decidido a parar e desembarcar de um sonho de muitos anos. Nem sei mais como resisti, contornei ou enfrentei a tudo e a todos, dentro e fora do filme.
Ainda na fase de pré-produção, isto é, enquanto se armavam a infraestrutura e as condições materiais que iriam sustentar a visibilidade/oralidade das cenas e diálogos imaginados e escritos, fui intempestivamente intimado a submeter o roteiro à censura da 5ª Região Militar, sediada em Curitiba. Depoisde dias de espera, o Exército exarou um estranho nihil obstat “verbal” endereçado não a mim ou à produção do filme, mas à Policia Federal, então dirigida por um oficial das Forças Armadas.
A evidente manobra era então para eximir o Exército de um eventual vexame caso o constrangimento ilegal viesse a público (pela Constituição então vigente, um filme só era submetido à censura depois de pronto, mas ditadura é ditadura…). Tudo sem rastros. Na Polícia Federal fui “mimoseado” com perguntas e insinuações as mais esdrúxulas. Havia até uma que, digamos, fazia certo sentido: a dois meses do AI-5 (1968) – beneficiado por um habeas corpus –, eu fora excluído de um Inquérito Policial Militar que apurava “delito de opinião” entre uma trintena de jornalistas paranaenses dedurados por seus colegas de redação. O coronel-censor insistia que eu dissesse que inconfessáveis motivos me haviam levado a “mexer neste vespeiro, que é o Contestado, logo agora” (sic).
Era esse o pedágio que eu estava pagando pelo auxílio logístico (imprescindível), que só existia numa guarnição militar, então solicitado às Forças Armadas. Só era factível encenar o que previa o roteiro tendo à disposição munição de festim, armamento (fuzis e canhões da época ainda funcionando) e cobertura profissional de sargentos-armeiros para prover a manutenção e guarda de todo um razoável arsenal de campanha. A princípio houve sinal verde (sem trocadilho…), o que me soou como uma régia retribuição por ter-me “curvado” ante a estúpida censura prévia. Ela, na verdade e na prática não produziu sequela alguma – porque o coronel-censor candidamente admitiu sua incapacidade para “ler” o roteiro, deixando-o tal e qual.
Quando já me encontrava com uma equipe paulista e um elenco nacional em Caçador, no vale do rio do Peixe, a mais de 300 quilômetrosda Capital paranaense (700 km, de São Paulo), pronto para o primeiro tour de manivelle, veio uma comunicação seca e peremptória de que tudo o que fora apalavrado era letra morta. Não demorou, atitude idêntica tomou a Polícia Militar de Santa Catarina, que iria colocar à nossa disposição parte de contingente local como extras fazendo o “papel” das tropas do Governo.
Ainda, numa caravana suicida, dirigimo-nos todos, atores e técnicos, para Curitiba, na doce ilusão de conseguir demover o general-comandante de sua inesperada decisão, ele que, pessoalmente, autorizara a cessão do equipamento bélico solicitado. Nem fomos recebidos, que dirá alvo de justificativas ou explicações.
Mas logo soubemos que a negativa albergava duas vertentes plausíveis que acabaram confluindo: 1) o Exército temia pelos rumos que o roteiro, apesar de “censurado” (teoricamente), poderia tomar quando as cenas fossem materializadas em celuloide; e 2) o país entrara em estado de prontidão porque as Forças Armadas haviam detectado a guerrilha do capitão Lamarca na região de Registro, à beira da rodovia BR-116 (que liga São Paulo a Curitiba e ao Sul).
E nós que queríamos apenas fazer um filme… Um filme com tiros e morteiros que de uma hora para outra ficara “belicamente” inerme. Não tínhamos uma arma sequer, muito menos canhões (tão somente uma metralhadora de museu, autêntica de 1910, “inadvertidamente” emprestada pela PM do Paraná, muito cinematográfica, por sinal…).
Foi uma operação inacreditável, essa de tocar o projeto a qualquer custo e sacrifício, o mesmo entusiasmo que congregara a todos no projeto de filmar um inaudito levante popular em plena castração ditatorial. Tema-tabu, seu mito estava acima de nós.
Aos poucos e com paciência, porém, um civil aqui e outro acolá emprestando Winchester e revólveres, a caboclada espontaneamente desovando dezenas de enrustidas carabinas e espingardas, armas brancas e munição, a produção de “A Guerra dos Pelados” pôde organizar seu “exército” regular. Felizmente já havíamos alugado as fardas do exército da época que o roteiro exigia, trazidas de São Paulo – espólio autêntico pertencente a um colecionador.
Quanto à indumentária dos pelados, foi bem mais fácil: como os próprios sertanejos interpretavam a si mesmos, a roupa rota do presente acabava se confundindo à roupa rota dos seus antepassados. Não poucas vezes ouvi da caboclada me confessando que se sentia na pele de algum avô ou parente morto nos entreveros com “a força” (genérico para Polícia Militar e Exército). Um inescapável atavismo que as circunstâncias trouxeram à tona e puderam revelar à câmara rostos antológicos e atuações memoráveis. Portanto, nem tudo estava perdido.
Ponto de honra: faltavam apenas os canhões. Carpinteiros contratados em uma semana fabricaram quatro exemplares de madeira (com rodado de carroça) – cópias fiéis de congêneres utilizados em combate conforme iconografia de 1914 à mão. Para fazê-los “funcionar” atulhava-se sua boca de bosta de gado ou cavalo, adicionava-se talco industrial e pólvora, e através da faísca de uma espoleta, provocava-se formidável explosão que lançava excremento (e seu respectivo “perfume”…) e imitação de fumaça pelos ares. Na fase de sonorização do filme, acoplamos o som de canhões da Guerra da Secessão americana e os nossos soavam melhor (…) do que se os canhões fossem os próprios, originais do Contestado. Os fotogramas do filme são indesmentíveis.
Para os alvos acertados, mais de cem quilos de dinamite substituíram os efeitos da detonação das balas que só existiam na trilha sonora. Um oportuno lance da imaginação para um filme que parece uma superprodução, e que em 1970 custou apenas 450 mil cruzeiros (orçamento médio para filme brasileiro de então; hoje não seria factível por menos de US$3 milhões).
Quando pensamos que “exibindo” defronte às câmaras o nosso “Exército Brancaleone catarina”, as agruras diminuiriam – o clima das filmagens era gravado quase diariamente por denúncias de militares à paisana infiltrados entre as centenas de anônimos figurantes – à procura de informações. A delegacia de polícia de Caçador ameaçava fichar todos os extras, atores e nossa equipe, como “comunista”, logo após um jornal local, em tom de “falsa” brincadeira (na verdade, fora uma alcaguetagem cifrada), ter anunciado em manchete (reproduzida pela rádio da cidade) que produtores de cinema, sob o pretexto de estarem filmando, acobertavam treino de guerra de guerrilha. Dentre as dezenas de explosões imitando queda de balas de canhão, uma – ocorrida na travessia de um riacho –, ferindo dois atores, alimentou as suspeitas.
No mesmo diapasão de baixo astral, e pela total ausência de militares especialistas, a improvisação de emboscadas, escaramuças e nas lutas corpo-a-corpo, características de uma guerra de guerrilhas como foi o Contestado, sempre deixava enorme rescaldo de involuntários feridos e ofendidos. E todos acabavam baixando no hospital de emergência para as dores do nosso infortúnio…
A “guerra” fora do alcance da objetiva não raro competiu com a de “mentirinha” à frente das câmaras. Mas, uma vez findas as filmagens, todos festejamos a “vitória”, pois o filme estava na lata! – como se diz no jargão do cinema, o que significa que os maiores riscos ficaram para trás. Assim transcorreram aqueles terríveis, porém, inesquecíveis, cem dias entre preparação e rodagem propriamente dita de “A Guerra dos Pelados”. E sua travessia só foi possível graças à obsessão e ao destemor que mobilizaram desde o anônimo figurante à enorme equipe técnica e às dezenas de atores. Nos momentos de maior cerco institucional, cujos reflexos eram imediatamente sentidos na hora de dar visibilidade ao imaginado, todos os meus colaboradores, próximos ou distantes, entenderam que, ao resgatar um episódio maldito da história do Brasil, o preço seria alto. Ninguém desertou…
E não foi por acaso que a censura da ditadura Médici soube com argúcia acertar exatamente os diálogos com a cena em que aparece a palavra-chave “terra”, como sinônimo para os rebeldes, de propriedade, liberdade e poder. Por causa disso, em 1971, às vésperas de sua estreia nacional, o filme pernoitou em Brasília por mais de seis meses: os censores se dividiam entre proibi-lo pura e simplesmente ou liberá-lo com cortes. Esses argumentavam que, afinal, “uma andorinha (leia-se, o filme) não faz verão” (leia-se, algum tipo de surdo agito). Que o longa-metragem apenas sofresse cortes lapidares. E pronto!
Impotentes, ficamosem São Paulo– os coprodutores, Antonio Polo Galante e Alfredo Palácios, e eu, que também produzia o filme através de financiamento bancário – com nostalgia de quando a censura era exercida pela polícia e alguns “bons” cruzeiros resolviam impasses de ordem política e moral… Agora todo cuidado era pouco.
A partir da década de 1970 acensura passou (como, aliás, continuou até o final da ditadura, inclusive fortalecida, basta ver os atentados contra o filme “Je Vous Salue Marie”, de Jean-Luc Godard e a música, “Merda”, de Caetano Veloso) às mãos de “gente letrada”. Eram intelectuais ou que tais, militares, leigos e religiosos, supostos especialistas em Marx, Lênin, Mao, Fidel, “Teologia da Libertação”, mass media, isto é, em teorias, modelos e técnicas de “evangelização” das chamadas “ditaduras de esquerda”. O ideário fascista do almirante Penna Boto e do Papa Pio XII ainda nem havia desencarnado e já mudara de lado…
Depois de um silêncio atroz, só quebrado por notícias oficiosas, aliás, as mais lúgubres, fomos ansiosos ler o verso do certificado de censura. Eram três cortes cirúrgicos na imagem e no som: o primeiro mandando extirpar cena em que um “coronel” surra na bunda desnuda dois “pelados” com vara de marmelo (enquadração que, por sua aura esteticamente simbólica, acabou impondo o mote visual do cartaz do filme, de autoria do premiado arquiteto e designer catarinense, Manoel Coelho).
No segundo e terceiro cortes, ali sim, flagra-se uma leitura político ideológica direta na jugular das intenções, atenções e pretensões de “A Guerra dos Pelados”. Era imposta a ablação de cenas-chaves em que os fanáticos, sob o comando do seu líder, Adeodato, invadem a serraria da Southern Lumber and Colonization Company: em meio à destruição do escritório, e enquanto os demais rebeldes destroem o local, Vitorino (Zózimo Bulbul) descobre documentos que podem ser títulos de propriedade ou contratos de compra-e-venda de madeira, e começa a gritar (rasgando-os um a um): “Chega de pobreza! Chega de pobreza! Fora co’s gringo! A terra é nossa! A terra é nossa! Vingança!” Sem comentários. –
Sylvio Back, cineasta, poeta, roteirista e escritor,
autor de 38 filmes (12 longas-metragens) e de
21 livros (roteiros, poesia e ensaios);
em finalização, o doc de longa, “O Universo
Graciliano”; em preparo, a ficção, “A Angústia”,
baseado no romance de Graciliano Ramos.
SERVIÇO
O QUÊ: Café Kino exibe e debate o filme “Guerra dos Pelados”
QUANDO: quarta-feira, 10 outubro2012, apartir das 12h30
ONDE: Teatro da UFSC (ao lado da Igrejinha), Praça Santos Dumont, Trindade
QUANTO: Gratuito
CONTATO: Departamento Artístico Cultural da UFSC – (48) 3721-9348
Zeca Pires – (48) 9971-7951
Fonte: Bruna Andrade – Acadêmica de Jornalismo, Estagiária no DAC: SECULT: UFSC